
Durante a campanha presidencial, o tema foi tratado de maneira espúria e hipócrita. Desenterraram argumentos medievais, repletos de moralismo.
Uma questão de saúde pública foi soterrada por um discurso religioso ultrapassado que se misturou sem pudor com a demagogia eleitoral. Um estrago irreversível.
A Organização Mundial de Saúde estima que 20 milhões de abortos em condições inseguras são feitos anualmente no mundo. Cerca de 70 mil mulheres morrem nesses procedimentos ilegais.
É uma guerra civil cruel e silenciosa. No Brasil, as principais vítimas são pobres e negras. Como sempre. As que não se encorajam a encarar o corredor da morte das clínicas-açougues tomam o caminho da luta incansável pela sobrevivência de um número sem fim de filhos.
Mesmo assim, ninguém tem coragem de subir no palanque e, diante dessa tragédia, defender o direito a um tratamento digno, em hospitais públicos, com a devida assistência médica. Vale a pena repetir a palavra: direito.
Apenas 26% dos países no mundo consideram crime o aborto. A maioria, nações miseráveis ou dominadas por governos ditatoriais. A Europa inteira legalizou a interrupção voluntária da gravidez. Inclusive Portugal e Itália, bastiões do catolicismo.

É 25 de dezembro. É Natal. Na nossa Belém, um serralheiro percebe o choro de bebê dentro de um embrulho encostado na parede. O resgate é chamado e encontra um recém-nascido no saco plástico. Tinha sete horas de vida. A mãe é uma babá, de 20 anos, que atirou o menino por cima de um muro de dois metros, num terreno baldio.
Sabe qual é a novidade nessa história escabrosa? Nenhuma. Praticamente toda semana, crianças são abandonadas em algum canto do país. Para a sociedade, os moralistas e muita gente que fala em nome da religião e de Deus, essas mulheres são simplesmente assassinas. E ponto.
Não é simples assim – e a origem do problema os hipócritas jogam por cima do muro. O caso do Pará é exemplar para a discussão sobre a legalização do aborto, sobre a qual escrevi dois dias antes do ocorrido. É um tapa na cara de quem chama de homicidas os defensores da causa. É a prova de que há enorme diferença entre um feto interrompido e uma criança jogada numa lata de lixo.
Não existe hipocrisia sem ignorância, como dá para perceber.
Uma gravidez indesejada é um equívoco. Não poder interrompê-la, o início de uma sucessão de erros. Muitas vezes, mortais.
Novas tragédias vão acontecer. Milhares de filhos indesejados ainda estão por vir. E os hipócritas não vão cuidar dessas crianças infelizes. Porque nessas horas, e somente nessas horas, cada um que cuide da sua vida. Não é mesmo?
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